Por Gildazio de Oliveira Alves
O tráfico de escravos africanos
para as américas produziu o turbulento encontro de distintos grupos étnicos das
mais distintas tribos e regiões da África, ainda nos porões dos navios negreiros.
Nesses contatos iniciais o desenvolvimento de linguagens e códigos comuns se transformaria
em ferramenta imprescindível na formação de novos laços afetivos entre os
negros e de estratégias de comunicação e defesa frente aos senhores.
O estabelecimento de novos laços de
nação e a construção de novas identidades é o centro da discussão estabelecida
por Maria Inês Cortês de Oliveira em Viver e morrer entre os seus. Para
essa autora uma vez desfeitos os laços familiares e afetivos de outrora, os
africanos encontraram nas mais variadas formas de contatos entre os “irmãos de
nação”, maneiras de construção de novos laços afetivos.
Para Robert W. Slenes em “Malungu, ngoma vem! África coberta e
descoberta do Brasil”, a
falta de interesse dos brancos brasileiros em conhecer a língua dos escravos,
aliada ao fato dos diferentes grupos possuírem um vocabulário-raiz comum a
todos, possibilitou aos escravos a oportunidade de defesa frente a seus
senhores, mediante códigos de comunicação que misturavam a língua de origem com
o português, uma resistência silenciosa e dissimulada. A partir dessa primeira
análise torna-se possível delinear o estabelecimento de vínculos ente os
escravos, a partir da associação dos mesmos, na formação de uma verdadeira
“irmandade de defesa” e/ou combate. Os malungos, companheiros de embarcação,
irmãos de luta e de sofrimento, conhecendo um certo dialeto raiz, fortaleceram-se
frente aos brancos, que desconheciam e recusavam tal dialeto.
O contato dos escravos com uma nova
realidade exigiu a adequação dos grupos a novas regras, com critérios que
demarcavam limites raciais, sociais e culturais. Esse sistema de classificação
e separação criteriosa foi uma imposição do Poder civil e da igreja visando a
separação de grupos considerados culturalmente diferentes e potencialmente
hostis, que inicialmente tornou os grupos mais coesos, e se esvaeceu
posteriormente, com os matrimônios e as práticas religiosas intergrupal.
A construção de novos laços familiares e
afetivos, passaram inicialmente, pela concepção de “irmão de nação”, extremamente
importante para as estratégias de “associação étnica”. Os vínculos de solidariedade entre negros
foram sendo construídos pela comunicação estabelecida e graças ainda, à
constatação do “sofrimento comum”.
Antigos laços foram refeitos com o
encontro entre parentes oriundos da mesma região. Esses vínculos estavam
explícitos nos testamentos quando, até parentes mais afastados eram lembrados.
Quanto à constituição de novas famílias tornou-se comum a preferência dos
indivíduos pelos irmãos de nação. Outra forma de reconstrução de vínculos
afetivos e familiares foram as relações de compadrio, essencial para assegurar
a proteção e educação dos filhos na ausência dos pais. Nesse caso, percebe-se o
parentesco ritual substituindo vínculos familiares desfeitos pelo cativeiro e a
recomposição simbólica dos “laços de família”. No tocante a relação entre
vizinhos e agregados, um exemplo são as condições de moradia em Salvador do
século XIX, que permitia, a partir das moradias coletivas a partilha do mesmo
teto entre escravos e libertos de uma mesma nação, possibilitando a formação de
comunidades e a consequente articulação de levantes.
A comunicação foi, sem dúvidas, fator
primordial para o estabelecimento de novos vínculos e para a redefinição de
identidades. A língua bantu foi facilitadora dessa articulação entre
escravos no centro-sul e, a nagô na Bahia do século XIX, perpassava
qualquer ideal de nação e tornava-se língua comum entre escravos e libertos. A
comunicação foi utilizada ainda, enquanto instrumento de defesa, na soma de esforços
no sentido de atenuar o sofrimento do cativeiro.
Assim, Slenes destaca que a utilização
do termo “ngoma vem” como código de comunicação usado pelos escravos
para avisar a seus parceiros (malungu) da presença do senhor ou do feitor. A
expressão, incompreendida pelos senhores, era a mistura da linguagem bantu com
o português. A formação da nova identidade bantu no Brasil, ocorre, com os
escravos preservando suas raízes culturais e, simultaneamente, incorporando
novos elementos, como parte da linguagem e da religião dos brancos, que, por
sua vez, desprezavam os africanos, suas linguagens e seus costumes.
Para os grupos africanos “a vida entre
os seus”, permitia, concomitantemente, o fortalecimento no enfrentamento das
agruras do cativeiro e, mais enfaticamente a reconstrução de vínculos
familiares. O estabelecimento de tais vínculos, teve na possibilidade de
comunicação, através de uma linguagem com termos conhecidos de todos, fator
primordial e indispensável. Essa linguagem pavimentou a reconstrução das
identidades bantu e nagô no Brasil. Na Bahia, segundo Maria Inês Oliveira, a
reconstrução de vínculos ocorre com os africanos procurando, preferencialmente
“viver entre os seus” e, ao mesmo tempo integrando-se a relações com outros
grupos, como os crioulos, com quem partilhavam a árdua tarefa de sobreviverem
enfrentando hostilidades e preconceitos.
SLENES, Robert W. “Malungu, ngoma vem! África
coberta e descoberta do Brasil”. Revista da USP, 12 (jan/fev. 1991/1992),
48-67.
OLIVEIRA, Maria Inês Cortês de. “Viver e morrer
no meio dos seus: nações e comunidades africanas na Bahia do século XIX”.
Revista da USP, 28 (dez/jan/fev, 1995/1996), 174-193.
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